8.31.2010

Oniritron

Espero que você responda logo a esta mensagem, pois preciso saber se tudo esta bem. Quando acordei esta manhã, tive a impressão de termos conversado, alguma coisa me escapava da memória. Alguma coisa ou tudo, logo que pûs o esquentador a funcionar. Não tive tempo de me ligar ao Oniritron logo de manhã. Precisava ir trabalhar, alguns doentes estariam à porta do meu consultório logo nas primeiras horas do dia.

 Um novo vírus voltou a rondar esta última semana, tendo levado os mais débeis - aqueles que ainda falam a lingua do seu tempo - e encher a fossa recém aberta nos quintais da Via Hospitalar. Sobre isso ainda não sei muito, mas era de outra coisa que queria tratar. Falarei dos enfermos noutra ocasião.

Quando voltei para casa liguei o computador e o Oniritron. Ainda não tinha falado deste novo engenho, afinal são tantas as coisas que tenho de expliar, além de tudo o que se sucedeu entre você e eu, ou melhor, entre a sua e a minha existência, no mundo e na nossa família, ou a sua descendência.

O Oniritron é um decodificador de sonhos mais recentes, cujos diálogos podem ser passados para suporte digital, em formato de texto. Já houve cinco versões diferentes, e esta que tenho é a mais bem acabada, porém muito mais cara, por enquanto para poucos. Ouvi dizer que algumas empresas estão a desenvolver  algumas máquinas registradoras do material audiovisual dos sonhos, mas ainda estamos longe disso, quem sabe seu tetratataraneto, meu filho (hei de ter um), venha a conhecer ou usar tal façanha.

O processo exige tempo, e nas primeiras versões, causara dores insuportáveis aos usuários de pouca paciência. Com uma seringa, extrái-se um pouco de sangue, o suficiente para jogar no fundo de um tubo de ensaio. Ao sangue, deve-se misturar ranho, senão uma passada de algodão com cera de ouvido dá para o gasto. Este tubo deve então ser acoplado a um capacete que contêm fios nanoconectores. Ligados ao cérebro pela geração espontânea de nanotúneis que atravessam o couro cabeludo, as transmissões elétricas estão prontas para serem gravadas. O suporte de leitura das sinapses para detectar idéias e pensamentos é o mesmo daquele que te expliquei outro dia, usado em alguns exércitos e polícias. No nosso país, ainda só permitem o contrôle mental aos estrangeiros de categoria 3, e aos criminosos mais graves, aplica-se o controlador de movimento, através de um mecanismo muito mais simples. O aparelho que possuo, para uso pessoal, tem apenas a função de leitura. Para recapitular as sinapses passadas em estado de sono (cuja baixa frequência é logo detectada), o Oniritron opera uma paralisação cerebral, e um retrocesso dos sinais por impulsos negativos.  As primeiras versões do Oniritron falharam porque causavam alguns transtornos aos usuarios, parecidos com aqueles que você descreveu sobre os eletrochoques do seu tempo. As versões subsequentes trabalharam com anestesias cada vez mais eficazes. Esta que possuo corresponde ao quinto modelo, que injeta altas doses de dopamina no cérebro, ativando a sensibilidade erótica daquele que se distrái com fantasias estimuladas em alta frequência. Enquanto isso, a máquina retrocede e vasculha a sua memória. Depois do registro, a recomposição da memória até o estado atual exige um tempo muito menor, pois o capacete apenas insere informações que já estavam copiadas. Eu poderia lhe contar mais longamente sobre os rumores de tráfico de memórias, mas deixarei para depois. Uma vez terminada a operação, o usuário pode, com o cartão de memória, aceder aos diálogos de seu sonho. Foi o que fiz agora pouco.

Não tenho porque duvidar de alguma troça, pois como você sabe, moro sozinho, tranco a porta de minha casa a sete chaves, e guardo todos meus registros digitais num servidor subterrâneo que funciona por ondas magnéticas e estrenolódicas, que provaram ser muito mais fiáveis depois da primeira grande desintegração de satélites na guerra das placas. Quando lí o resultado do Oniritron por escrito, fiquei pasmo. Relí várias vezes, e não tenho uma sombra de dúvida: todo o diálogo repetia exatamente, palavra por palavra, todas as conversas que tivemos desde o nosso primeiro contato.

Não sei como isto pode ter acontecido. Só peço para que me diga se está tudo bem com você, e se não tem notado algo de estranho esses dias. Quero também que mantenha a calma, e não deixe de escrever.

Saudações,

do seu "neto"

B.