1.19.2009

De Sangue e de Números



Em A Lista de Schindler, filme em preto e branco, podemos notar em raros momentos (creio que dois), a passagem de uma pequena garota de vestido vermelho, uma figura anônima e passageira que vem manchar a cena em segundo plano. E ela é discreta. Podemos ver esta passagem à partir de dois ângulos. O primeiro, com o sentido comum da cor escarlate que representa o sangue - sinal de vida em meio a desesperados que perderam suas cores e almas tentando fugir do holocausto, ou de morte, de sangue derramado. Porém, indo um pouco mais longe podemos simplesmente notar o fato da sua singularidade: qual seria o destino daquela menina de vestido vermelho, daquela pessoa? Uma cor fugitiva e apelativa das pulsões de morte (que se opõem ao desejo no sentido mais restrito), não deve ter passado por acaso, e pode nos dizer muita coisa.

Passemos aos números. Invoquei a imagem da menina do filme de Spielberg, não somente por causa da mesma cor dos litros de sangue derramados na Faixa de Gaza. Mas também porque me faz lembrar um argumento hobsbawmniano de que, para um mero espectador distante e impotente de fatos que lhe comovem, uma história simples (por exemplo, o mártir singular do vestido vermelho de sangue, ou de outra criança judia ou palestina, genuinamente inocentes) provoca muito mais impacto do que números: mais de mil palestinos morreram, sendo um terço deles, crianças. Causa impacto, é terrível, e lastimável. Mais impacto ainda causaria o conhecimento por completo da vida curta e dura de apenas uma dessas crianças mortas soterradas, bomardeadas, esmigalhadas, ou de uma das suas mães. Acompanho aqui o raciocínio de Hobsbawm, para quem a tecnologia da destruição desenvolvida no século XX (ou o instrumento da barbárie) permitiu tal distância entre o assassino e sua vítima, que ficou muito fácil matar, e em massa - lembrando um de seus argumentos, de que é provável que o piloto que lançou a bomba de hiroshima e matou milhares de pessoas em segundos, seria incapaz de enfiar uma faca na barriga de uma mulher grávida.

Creio que a verdade deve ser trabalhada, ela não é intocável (apesar de Victor Hugo ter dito que a verdade é como o sol, sabemos que ela existe, mas não conseguimos olhar para ela). Se o sol ofusca, usemos óculos escuros. Por falta de método ou compromisso voluntário não estou, neste blogue, praticando nenhum exercício estrito de ciência social, e nem tenho esta pretensão. Compartilho a idéia weberiana de separação entre ciência e política (crendo no entanto, que sejam dois lados de uma mesma moeda), e esse é meu espaço político. Aproveito este espaço para dizer qualquer coisa sobre a atualidade do pensamento único: a crítica pós-moderna das ciências e da verdade-enquanto-construção-parcial-de-fatos-que-são-apenas-versões, o extremo-centrismo, o em-cima-do-murismo, são os sintomas precedentes à crise. E são a própria crise, o vazio a ser preenchido. Para ultrapassar esta barreira, é preciso assumir a parcialidade, e passar para a próxima fase, que é a de construção. Para isso, é claro, é preciso refletir olhando para trás, pois é um momento de recuo estratégico que requermuita disciplina.

Voltando ao Sangue e aos Números:

A verdade que ofusca nossa visão, seria ela a soma inalcansável, no plano sensível, dos terrores singulares ocorridos recentemente em Gaza? Caso seja, eis então o labirinto pelo qual percorremos à procura de algo, alguma coisa viva que daria sentido ao vôo assustado do anjo da história. Devemos percorrê-lo de maneira racional. Em que medida este minotauro escondido se espelha em cada um de nós, e é universal? A procura de sentido é um movimento do singular ao universal que podemos alcançar com nosso conhecimento.

Por exemplo: e se invertessemos o discurso jornalístico comum de que esta guerra, ou qualquer outra, é desumana? Admitir e encarar o fato de que a tortura e a barbárie são humanas é o primeiro passo concreto para uma melhor compreensão da história. E para a sua mudança: o que Hitler tinha de humano? Tudo, até demais.

De um ponto de vista reformista, eu diría que, para a paz no Oriente Médio, um grande avanço sería a laicização do Estado de Israel - e como leitura sobre a construção sionista da história de Israel enquanto terra exclusivamente judaica, proponho os textos de um excelente historiador judeu chamado Shlomo Sand.

Mas como em 2009 acordei com ressaca desse Mundo Podre, bato os pés com a convicção de que enquanto o Estado de Israel existir nesses termos, não haverá paz. Naquele canto.


PS: voltei, menos poeta e mais político, mas voltei depois de um mês para este diário de só mais um maluco.