2.24.2009

Desencontros


Os dedos amarelados de uma mão tremida tocam play num toca fitas. Seguem-se essas palavras:

«Sempre gostei dos meus sonhos. Não, nunca tive nenhum problema com isso, é uma das poucas coisas com as quais eu me preocupo, quero dizer, dou importância, mas não tenho medo de pesadelos. Quando acordo, antes de levantar fico deitado alguns minutos, e a lembrança do sonho aparece. Monto um quebra-cabeça. No começo é dificil, agente vai se acostumando. Acredito que quando nos levantamos com pressa o sonho escorre pela coluna e se perde no primeiro reflexo, tipo aqueles automatismos, sabe? Aprendi isso com uma pessoa que ia muitas vezes pra Índia. Acho que ela era seguidora de um guru qualquer, daqueles que não comem e materializam uma serie de coisas para oferecer aos adeptos. Não acredito nessas coisas, mas nos sonhos sim. Para mim eles revelam muitas coisas, não do jeito freudiano, mas coisas de espírito mesmo. A Índia deve ser um bom lugar pra se viver, parece que as pessoas lá estão dispostas a acreditar em quase tudo. Será que isso é bom? Ah, sim, então, os sonhos. O que me impressiona mais é o sonho lúcido, aquele em que sabemos que estamos sonhando. Geralmente, quando isso acontece, agente acorda. Mas eu aprendi a controlar a lucidez no sonho, e ai as coisas ficam mais fantásticas. Sou capaz de fazer aparecer uma linda mulher, voar, trazer amigos do passado, acordar defuntos, conversar com eles. Já te aconteceu uma coisa parecida? Ah, mas você tem que tentar! Como assim, pra você isso não é tão importante? Hein? Ta certo, sei que você não tem muito tempo agora, mas deixa eu só, perai, tenho aqui algumas anotações, sabe que as vezes eu escrevo meus sonhos, espera um pouco, não tô achando, deve tar no outro bolso, ah, ta aqui. Então, deixa ver, esse aqui é bom, acho que faz um mês que escrevi isso, vou ler porque minha letra é meio porca, e eu prefiro interpretar. Pronto, um corredor de plantas, bonitas. Na verdade, eram trepadeiras por todos os lados, um ambiente verde claro, e uma paz ao redor. Avanço. Percebo que o jardim vai clareando... O que? Não, mas espera só cinco minutos, a estória é fascinante, você vai gostar. Bom, tudo bem, devo é estar te chateando com tudo isso. Mesmo? É a única versão que eu tenho, ainda não passei pro computador, mas quando o fizer te mando por e-mail. Bem, senão, deixa ver... Posso confiar em você? Não sei, não costumo confiar nas pessoas, nada contra você, é que tenho alguns traumas com isso, sabe que uma vez confiei tanto numa pessoa que... ta bem, desculpa, mas olha, finalmente acho que você pode ficar com esse caderno, vai servir pro teu trabalho, com certeza. E você me parece uma pessoa muito correta, não vai fazer besteira. Parto hoje pro interior e só volto semana que vem, te ligo quando chegar pra vir buscar o caderno. Sim, claro que pode ficar com ele, mas não mostre pra ninguém, por favor. Pois é, também vou indo. Obrigado por tudo, da próxima vez sou eu que te convido. É muito bonita a sua casa, gostei daqui, esses quadros são de quem? Hum, nunca ouvi falar, mas são bonitos. Me diz uma coisa, é pra que esse trabalho afinal? Sei. Não entendo muito dessas coisas, na verdade sou pouco sabido, só sei de sonhos, desse tipo de coisa não sei nada. Mas acho que você vai gostar de conhecer a minha casa, ela é bem menor que essa aqui, mas tem uma varanda no meu quarto. É, é lindo. Também, já vou indo, você parece estar apressado e eu aqui te atrasando. Sabe, no meu trabalho eu... tá bem, já sei, me desculpe pela tagarelice, mas afinal foi pra isso que você me chamou não foi? Sim, fica pra proxima. Olha, prazer em conhecê-lo, é por aqui? Então ta, até a próxima, adeus!”

A mão, cada vez mais lenta, ia parando a fita intermitentemente. Agora, ela para, avança, e toca:

“Te incomoda se eu fumar? Pois é, tive três mulheres ao mesmo tempo. Claro que não, nenhuma delas podia saber das outras, alias esse era o meu problema, passei por maus bocados e muitas peripécias pra manter as coisas em ordem. Pelo menos não dormia sozinho. No final não dava mais, era muito perigoso trazer uma pra casa, eu tinha que evitar andar com uma pelo bairro de outra, e o pior era quando na cama com Taís eu chamava por Charlotte, e à Charlotte eu chamava Rosa. Coisa de excitação, trocava as bolas. Isso mesmo, pura sacanagem. Semprei gostei muito de aventuras, sou caçador de saias desde que nasci, alias, olha essa dai passando, que bela obra de Deus, hein? Não, calma, não olha assim com cara de cruz credo, que você assusta a moça. Tem de se jogar com discrição e honestidade, olho no olho, mas sem intimidar, como quem não quer nada. Sem querer querendo. Não se pode também ficar perplexo como quem viu a Virgem, ninguém é virgem com essas pernas. Tem é de mostrar curiosidade. Muita curiosidade. Desvie o olhar as vezes, mas sem fugir do olhar dela, dando a impressão de que tem coisas mais importantes pra pensar. Se ela te olhar mais de três vezes, vai, mas com firmeza. Passa pra segunda marcha, a aproximação. Ai não tem mais regra, só arte. E sendo sincero, claro, se não tiver nada pra dizer, diz isso mesmo, muita mulher gosta de homem tímido. Se o papo for bom, passa pra terceira, o toque da mão. Infalível o toque da mão, pois se ela não gostar do toque, não é tão mal, terá sido um fora por fora, um subentendido que não fere ninguém. Sem desaforo. Agora, se ela se aconchegar, pode passar pra quarta, que a quinta é na cama. Depois, percebe-se com a experiência que tem algumas que não dão o braço a torcer, mas que no fundo querem mesmo é que você force a barra. Essas são as melhores, mas não são pra qualquer um. Enfim, tem muita mulher difícil por ai, mas nenhuma é impossível. Todas querem, esse negocio de mulher fiel ao marido ou sem desejo é mito, não existe, só faixada...

A mão suada para a fita, avança, e toca novamente:

Então. Foi triste. Eu disse que não amava mais ela, foi choradeira pra cá, gritaria pra lá, nada de estranho, mas triste. Ela demorou pra se recuperar, mas acabou encontrando um homem correto, médico, burguês, rico, bonito. Parece com você. Bom pra ela, de novo. Fiquei puto! Nunca achei que isso fosse acontecer, senti ciúmes, acho que é por que o cara é bem sucedido, e eu aqui, desempregado, já to chegando aos cinqüenta, enfim, c’est la vie. Se paquera rendesse, eu tava hoje mais rico que o sultão de Brunei. Nasci no lugar errado, devia é ter vivido por essas bandas onde poligamia não é crime. Pois é, foi assim, e é assim que tem de ser. Mulheres. Não posso viver sem, uma só também não me basta. Não presto mesmo. Como você escolhe teus entrevistados? Estranho, não imagino ser uma pessoa assim. Faça o que quiser, cada um sua esquisitice. Mas fico lisonjeado, nunca ninguém tinha me pedido coisa assim. Obrigado, sempre fui sincero. Ta certo, mas como nos encontramos quando isso estiver pronto? Eu sempre ando por aqui, se não me ver é só perguntar por mim. É isso. Pedimos a conta?”

Irritada, a mão abre o toca fitas para verificar um problema inexistente, depois o coloca de novo para funcionar. Agora a mão parou para ouvir:

Voltou a fita? Grava. Não sou mulher fraca, não to aqui para pequenos casos e conversas que dizem que as mulheres são sensíveis e inconstantes. Sim, mas as mulheres só são assim porque sempre foram oprimidas. Na verdade não é tão simples assim. As mulheres são muito machistas em geral. Pois é, o sistema de opressão numa sociedade tão grande só pode ser assim. Eu to irritada. Para a fita. Volta. Não pode voltar? Senão eu me calo, e minha carona ta chegando. A ordem é mais eficaz quando os de baixo se auto-oprimem, pode dar play, sim. Ninguém é obrigado a se alienar, mas as pessoas sentem essa necessidade de entrar no jogo do poder, se submetendo a um sistema anônimo mais poderoso que qualquer um. Espetáculos, e lugares-comuns. É do interesse dos que têm poder que as pessoas se sintam impotentes. Rápido. Eu não tenho esse sentimento, acredito que somos livres para inventar o nosso destino. Ele não esta traçado, nada estava traçado antes de qualquer coisa existir. É muito mais gostoso acordar e topar com coincidências que são presentes que você se proporciona. Eu? Fiz um ano de filosofia e larguei a faculdade. Problemas maiores, mas não era isso que você queria que eu contasse, não é? As coisas boas ou ruins são invenções, e a opressão não é de natureza humana. Como? Ta bem. O que nos condiciona é uma criação variada do próprio homem. Quem me dera poder brincar de Deus. Uma das minhas frustrações é a de não ser artista. Preciso criar alguma coisa. É isso, produzindo menos e criando mais, seríamos mais felizes. Qual outra procura senão a da felicidade? A dos outros também. Ninguém pode ser feliz sozinho. Pelo menos não por muito tempo. Pode parar por favor? Não, eu quero continuar, mas eu to me sentindo sufocada pelo teu gravador. Não to chorando não, é normal, isso sempre cai. Um dia eu acordei e na mesinha de cabeceira tinham quatro gotas de alguma coisa que eu não sei o que é. Não sei se eram lagrimas, não sei se eram minhas, tive medo de experimentar. Queria falar de mim, sinceramente. Saí de uma clinica há uns meses, acho que vou voltar. Não, não é por isso. É para fugir do meu marido e desse mundo. Claro que sim, ou você acha que o que tenho no olho são olheiras. Conheci-o na casa da minha melhor amiga, nos tempos de colégio. No final. Não. Mas ela estava muito apaixonada por ele. Nós entramos juntos na faculdade, ele estudava arquitetura, mas sempre foi um desgraçado, um filho da puta. Hum. Faz dois anos que ele começou a me bater. No começo eu pedia, na cama não, na briga mesmo, mas era a única maneira que eu encontrava pra acalmá-lo, e guarda-lo para mim. Polícia, nem pensar. Eu o amo. É, eu sei. Mas eu vou voltar para a clínica, ou fugir, mas não posso dizer que é ele quem me bate. Não. É um suicídio temporário. Quero. Chega, e você? Conta mais. Não, para outro dia não vai dar. Eu sei, fingir eu não vou conseguir. Mas posso fugir, por uns tempos, dizer que eu to em qualquer lugar. Sei lá. Meu marido ta chegando, se ele me ver com alguém. Não quero isso agora. Mas guarda nossa conversa para mim, de sextas estou aqui. Vai. Ah, você tinha mesmo parado a fita?..”

A fita parou de rodar. Era preciso, mais uma vez, trocar de lado ou mesmo de fita, mas Ricardo, ao ouvir pela enésima vez a voz de Isabel, sentia-se afogado para sempre na amargura. E não sabia bem o que fazer.