10.28.2008

O CARÁTER DESTRUIDOR:



Lançando um olhar retrospectivo sobre sua vida, é possível que um homem se dê conta que quase todas as relações profundas que ele teve foram com pessoas consideradas de “caráter destruidor”.
Um dia, por acaso talvez, ele descobriria isto, e quanto mais violento for o choque desta descoberta, mais ele teria chances de descrever o caráter destruidor.
O caráter destruidor só conhece uma palavra de ordem: dar lugar; só uma atividade: abrir espaços.
Sua necessidade de ar fresco e espaço livre é mais forte que qualquer raiva.
O caráter destruidor é jovem e gozado. Destruir, com efeito, nos torna mais jovens, porque nós apagamos os traços de nossa idade, e nos agrada, porque abrir espaço significa, para o destruidor, resolver perfeitamente o seu próprio estado, extrair a raiz quadrada. Nós alcançamos tal imagem apoliniana do destruidor, quando percebemos até que ponto o mundo é simplificado se o considerarmos digno de destruição.
Tudo o que existe se encontra assim harmoniosamente envolto por um laço imenso.
Esta é que dá ao caráter destruidor um espetáculo da mais perfeita harmonia.
O caráter destruidor é sempre de ataque. Pelo menos indiretamente, é a natureza que dita seu ritmo. Pois ele deve ultrapassá-la. Sem o que, ela mesma se encarregaria da destruição.
O caráter destruidor não tem nenhuma idéia em mente.
Suas necessidades são reduzidas; antes de tudo, ele não tem a mínima necessidade de saber o que virá substituir o que foi destruído. Primeiro, pelo menos por um instante, o espaço vazio, o lugar onde se encontrava o objeto, onde vivia a vítima. Encontraremos alguém que precisará deste espaço, sem ocupá-lo.
O caráter destruidor faz o seu trabalho e só evita a criação. Do mesmo jeito que o criador busca a solidão, o destruidor precisa sempre estar acompanhado de pessoas, testemunhas da sua eficácia.
O caráter destruidor é um sinal. Do mesmo jeito que um ponto trigonométrico se expõe ao vento, ele á exposto às fofocas. Não faz sentido querer protegê-lo.
O caráter destruidor não quer ser compreendido. Para ele, qualquer esforço neste sentido é superficial.
O mal-entendido não o atinge. Ao contrário, ele o provoca. Como o provocaram os oráculos, essas instituições destrutivas estabelecidas pelo Estado. O fenômeno mais pequeno-burguês, a comeragem, não surge somente porque as pessoas não querem ser mal-entendidas. O caráter destruidor aceita o mal entendido; ele não incentiva a comeragem.
O caráter destruidor é inimigo do homem canalizado. Este procura o conforto, cuja concha é a quintessência. O interior da concha é o traço bordado de veludo que ele imprimiu no mundo. O caráter destruidor apaga até os traços da destruição.
O caráter destruidor se junta à frente dos tradicionalistas. Alguns transmitem as coisas deixando-as intangíveis e conservando-as. Outros as transmitem deixando-as mancáveis e destruindo-as. São estes últimos que chamamos de destruidores.
O caráter destruidor possui a consciência do homem histórico, seu impulso fundamental á uma desconfiança intransigente em relação ao curso das coisas, e uma constatação apressada de que tudo pode passar mal. Desse fato o caráter destruidor é a própria viabilidade.
Aos olhos do caráter destruidor nada é durável. É por esta razão precisamente que ele vê caminhos por todos os lados. Onde outros dão com a cara na parede ele ainda vê um caminho.
Mas como ele vê caminhos por todos os lados, ele precisa varrer todos eles. Nem sempre pela força bruta, às vezes por uma força mais nobre. Vendo sempre caminhos, ele está sempre num cruzamento.
Nenhum instante pode conhecer o próximo. Ele demole o que existe, não por amor aos escombros, mas pelos caminhos que os cruzam.
O caráter destruidor não tem o sentimento de que a vida vale a pena a ser vivída, mas que o suicídio não vale a pena de ser cometido.


Por Walter Benjamin
Tradução do francês por Patrick Figueiredo
Para Andrés, Ivan y La Cucaracha.