3.26.2010

O bar do Alí

Nunca este rapaz poderia pensar que algo assim pudesse acontecer. Ele não estava em seus melhores dias, porém a boa notícia que sua namorada vinha lhe trazer parecia de bom grado. Eles entraram neste mesmo bar de esquina de sempre, com as mesmas pessoas de sempre, ou quase sempre, para tomar e comer tudo que já era conhecido. Só uma boa novidade, trazida pela amada, é que poderia mudar qualquer sufoco da rotina, e ele queria saber logo, queria saber mais! Calma, disse ela entre sorrrisos e beijos, já te conto tudo. Vamos primeiro sentar alí daquele lado.
             Há qualquer coisa que acontece nos intestinos das pessoas mais nervosas quando a ansiedade bate á porta, e nesses casos, como alguns leitores devem saber, é preciso aliviar-se sentando em algum trono sanitário, quando há. Ainda mais se não há nenhuma estratégia possível de espelir a dor soltando gazes silenciosos, porque se sabe que estes são os mais fedidos. Sim, há várias estratégias de persuasão, etc. Mas o nosso pequeno herói estava decidido. Vai sentando que eu preciso ir ao banheiro. Pode pedir o café que eu já chego.
            Assim foi ele, com passos apertados e a mente distraída como quem não quer correr. O corredor se alongava por detrás do balcão, e levava a uma escada que descia para o banheiro. Disto estava ele seguro. Falta dizer que, enquanto não se aliviava, o rapaz pensava em algo para escrever, mas não sabia bem o que. Erro crasso e quase metafísico esse, da procura por um tema pelo qual passam todos os pseudo-escritores que se multiplicam cada vez mais em blogues do que em bares. Mas isso não importa. O que importa é que ele estava pensando, certo, em qualquer coisa, enquanto seus passos desciam mecanicamente os degraus até a porta. E pensando como sempre, pois este nosso personagem tem uma propensão ao devaneio que se caracteriza mais por uma distração, quase patológica, do que por qualquer idéia brilhante que em meio século de vida já poderia ter brotado. Essa distração, que qualquer especialista de plantão poderia chamar de défice de atenção, já proporcionou tantos mal entendidos, gafes e claudiques, que o rapaz tinha recebido, ainda criança, o apelido de Lua: diminutivo de “da lua”. Não era tão mal, pra quem queria ser artista. Lua gostava das mesmas coisas que qualquer outro da lua gosta, fazia pouca coisa, se cansava facilmente, e estava frequentemente doente. Era a fragilidade do bom senso, disse um amigo seu, no dia em que Lua desistira de viajar com os amigos porque queria estar sozinho com suas coceiras mentais, dizendo que sentia dores nas costas. Mas era contudo um bom rapaz. Doce, ou dócil, era uma das qualidades que atraiam namoradas que o largavam sucessivamente. Elas se cansavam pelos mesmos motivos que davam ao rapaz o apelido lunar. Porque há diferenças entre lunares e lunáticos. E era sobre isto que Lua pensava ao abrir a porta que estava no final da escadaria.
            Qual espanto não foi o seu, quando ao abrir a porta, encontrou-se na rua, e não no banheiro. Saco, de novo, não aguento mais. Não é preciso dizer que era ele, no fundo, que não se aguentava mais. Quantas vezes ele não abrira em casa a porta da despensa quando queria ir á cozinha, ou o armário quando queria fazer qualquer coisa, já não sabia o que. Relembrando estes episódios, que outros chatos chamariam de atos falhos, e segurando a porta da saída de emergência que dava para a rua, Lua reparara na tabacaria do outro lado, e ponderou entre se era melhor voltar para ir ao banheiro, ou ir logo comprar o cigarro que faltava. Dar depois uma volta ao quarteirão para chegar ao bar, e contar o caminho á namorada parecia sensato. Não seria a primeira explicação que ele haveria de dar sobre suas distrações crônicas. Se não fosse um certo vício avançado em nicotina, ele não teria avançado para a calçada, e fechado atrás de sí a porta de emergência que só podia ser aberta pelo lado de dentro do bar. C’est pas grave. Lua foi á tabacaria, fez fila, deu seu dinheiro, pegou seu tabaco e voltou, como sempe, pensando em qualquer coisa para lá de Marrakech. Dobrou duas esquinas, um pouco mais contente porque já se sentia aliviado. Afinal, os sobressaltos caóticos em seu intestino eram mais por transtorno passageiro do que por um toque urgente de necessidade vital. E assim ia, como sempre fora, caminhando, embaralhando suposições e vendo os carros passar. Um carro vermelho de modelo antigo e remodelado o fez pensar naquele que queria tanto comprar, mas que nunca tivera dinheiro para tanto. Aliás, como poderia fazer para arranjar algum dinheirinho extra, uma economia ele nunca tinha feito, e muita coisa ele não sabia fazer. Sua formação era longa, sem perspectivas de carreira, e tudo isso e mais alguma coisa começava a preocupá-lo, quando se deu conta que tinha chegado na terceira esquina, ultrapassando, de longe, a entrada do bar.
            Ela não pode mais me esperar, pensou. Ao voltar com passos mais rapidos ainda do que aqueles que o tinham levado para a saída de emergência do bar, ele se sentira concentrado como nunca. Mas o bar não estava lá. Ou parecia não estar. Lua volta, Lua passa e volta na calçada, e depois na calçada em frente, para se certificar de que não estava ficando lunático. Não pode ser, vou voltar para o quarteirão, e dar a volta toda, por onde comecei. Lua voltou para a tabacaria, de onde via a porta dos fundos fechada do bar. Foi por aqui que eu saí, basta dar a volta. E Lua voltou. Lua deu voltas. Não é possível. Ao passar mais uma vez em frente á porta dos fundos, Lua tentara abrir com toda a força, mas em vão. Depois de mais algumas voltas, decidiu entrar novamente na tabacaria e perguntar pelo bar. Que bar, respondeu o dono. Aquele bar,  apontou Lua para a porta. Aquela porta é uma saída de emergência, mas não é de nenhum bar. Como não? Aquilo foi um bar, mas faz muito tempo que foi abandonado, faliram uns três anos atrás. Mas eu estava lá agora! O dono da tabacaria olhou para Lua com altivez. Foi aos fundos conversar com sua mulher, que apareceu na loja e disse: meu rapaz, ali era o bar do Alí, que morreu há pouco, mas  o bar já fechou faz tempo. Lua queria dizer alguma coisa, mas estava tão atônito que voz nenhuma saiu. Se quiser pode ir verificar do outro lado, agora o local é uma agência de seguros, não sei o que eles podem te dizer. Lua voltou, desta vez correndo, para o outro lado do quarteirão, e entrou na tal agência, onde duas secretárias riam sentadas atrás de seus respectivos computadores, aproveitando a folga do patrão. Depois de alguns minutos parado na frente delas sem poder dizer nada, ele gritou: cadê o Alí! Cadê! Elas se entreolharam com cumplicidade, como se entreolham dois amigos frente a um desconhecido louco, e olharam-no com o mesmo desprezo que muitos olham quando cruzam com algum louco desconhecido: não sabemos do que o senhor esta falando. E ele saiu da agência para dar mais uma volta ao quarteirão.
            Hoje, Lua já completou milhares de vezes o mesmo percurso, as mesmas voltas, incontáveis vezes, ou só por ele contáveis e contadas. Cada vez que olho pela janela vejo-o embaixo, já velho, a dar voltas e voltas, sempre na mesma direção. Pergunta por ela, pergunta por ele, pelo sol, por um cigarro, uma moeda por favor. Mas não para.