8.13.2009

Ricardo Maestro não conseguia mais tirar da cabeça os monólogos contidos nestas fitas recebidas por seu colega Daniel. Havia também algumas anotações de endereços, nomes, e histórias de vidas, todas contidas numa caixa usada de papelão. Sua maior dificuldade era a de relacionar todas essas vidas com o crime brutal, de perfil psicopata, cometido por uma pessoa que não poderia ter alma. Ou poderia. Quem era o entrevistador, sempre mudo? Seria ele quem mandara a caixa para a delegacia? A ronda por todos os endereços resultou inútil. Eram pistas falsas, certamente. A questão era a de poder discernir a verdade na mentira, e para isso ele não podia deixar escapar qualquer detalhe. As únicas indicações palpáveis eram as de que o sujeito autor das gravações devia ser um homem bem cuidado, de classe alta, estudado. Daniel não tinha idéia de onde poderia ter sido enviado o pacote dias antes. O pai de Isabel não parava de ouvir a voz da filha, e algum medo lhe impedia de continuar seu trabalho com a precisão que sempre teve. O marido de Isabel tinha sido encontrado logo depois do assassinato, e entrou em pânico ao saber da notícia. Interrogado novamente após a chegada das fitas na delegacia, foi então espancado por Ricardo, que já suspeitara que o cunhado batesse em sua filha. Depois foi solto, não sabia de mais nada. O delegado precisou da vigilância de seus colegas, pois estava prestes a cometer o pior. O tal cunhado tinha um álibi. Era violento, mas não tinha motivos nem perfil para ter estuprado, sufocado e desfigurado a moça com um tiro de grosso calibre no meio do rosto. A notícia tinha saído nos jornais e chocado o país: mulher de vinte e cinco anos, filha de delegado da polícia, é brutalmente assassinada no quarto de um motel no bairro da Lapa, em São Paulo. Ela foi encontrada nua, amarrada na cama com nós profissionais, e a sua cara estava irreconhecível após os tiros dados à queima roupa. Todos os que estavam presentes no motel foram interrogados. Alguns deles tinham ouvido os tiros, mas ninguém tinha visto o assassino. O nome e o número de registro geral usados pelo suspeito que reservou o quarto eram falsos, salvo os de Isabel, cujo documento fora encontrado no quarto ensangüentado. As câmeras de vigilância não acusaram mais do que a passagem banal de casais que se apavoravam na hora de depor, não tanto pela gravidade do caso em si, e sim pela preocupação de preservarem seus adultérios no anonimato. O delegado reconheceu o colar da esposa falecida, aquele que Isabel nunca deixara de usar desde que o tinha herdado. Ele recusou todas as entrevistas aos jornais, que o difamaram, e atrapalharam na investigação. Mandou como de praxe o corpo para o Instituto Medico Legal, mas tal era o estrago na ossatura craniana, que os médicos penaram em certificar a ordem das feridas. Ricardo usou então de sua influencia convicta para mandar arquivar o caso, enterrar o corpo com pouca cerimônia, e seguir assim uma investigação informal, seu assunto pessoal. Depois de ter esbofeteado um jornalista que estava de plantão parado frente à porta de seu apartamento, sua imagem, agora pública, começou a ser espalhada como sendo a da vítima mais violenta da semana. Ele não gostava disto, e odiava jornalistas. Ao saber que estavam começando a investigar sobre seu passado, Ricardo saiu de seu escritório com sua .45 carregada, caminhou com passos furiosos pela avenida São João, até entrar na sala do editorialista responsável, arrebentando as portas e uma perna do jornalista indiscreto. Quando este lhe perguntou desesperado se o homem não tinha escrúpulos, Ricardo respondeu com o puxar do gatilho, e o burocrata logo se adiantou: esqueça tudo o que eu disse, apagarei tudo o que tenho. Com este assunto encerrado, voltou para seu escritório, sentou, e chorou.
Foi então que Daniel aparecera com a caixa nas mãos, dizendo que tinha recebido aquilo de manhã, e que deveria conter muitas pistas, senão a solução do caso, mas que seria um enorme quebra-cabeça para montar. A caixa tinha vindo com um bilhete imprimido, uma mensagem: para Ricardo Maestro, de um amigo. Amigos. Ricardo era de poucos amigos. Teve no passado, alguns bons, outros piores, alguns artistas, companheiros de luta, perdidos, traídos, traidores, alguns mortos, outros agora ricos e políticos, outros torturados, ou como ele, esquecidos querendo se esquecer. Quem poderia então querer ser seu amigo? Para quê? Amigo ou não, esta pessoa procurada parecia mais alguém que queria comprar uma briga qualquer, era o primeiro suspeito. O caderno do sonhador estava entre as outras peças da caixa, e sua caligrafia era difícil de ser decifrada. Bastou, no entanto, uma noite de insônia para poder ler e tomar algumas anotações, que apesar de lhe parecerem irrelevantes, algum interesse o fez agarrar-se a meros detalhes oníricos de um estranho, como se aquilo aliviasse sua tensão. Ao todo eram mais de quinze sonhos rabiscados e contados nos mínimos detalhes, sem pudores de esconderem passagens eróticas ou qualquer pulsão supostamente criminosa. Era mal escrito, mas cada estória tinha qualquer coisa que cativava a atenção de Ricardo. No final, pareciam contos incoerentes de um homem demasiado comum, com seus medos e suas paixões, como todo sonho. Às oito da manhã Daniel entra no escritório de Ricardo para saber como andavam as escutas:(continua)