10.03.2009

Em cima-do-murismo

A pedido do Antropocoiso, uma reflexão sobre o extremo-centrismo. A realpolitik atual parece-me ter pouco a ver com aquilo que foi no século XX. O que tenho em mente é menos uma condenação do que um diagnóstico da política. Uma exigência de "neutralidades" (podiam ser várias aspas) impera nos discursos políticos e na justificação do exercício midiático. A política esvazia-se enquanto tal, quero dizer, não vejo mais políticos no poder, vejo técnicos. A tecnocracia é palavra mais ideal para definir o extremo-centrismo. Não se trata de mudar um sistema, um mundo, um homem, uma estrutura. Trata-se de engolir o que temos como sendo natural, e os técnicos propõem reparar, aqui e alí, os sintomas isolados: hora é um desemprego, outra vez é uma gripe, as oscilações de uma moeda, uma intervenção de guerra "temporária", um comichão, uma dor de cotovelo, etc. É como se vivessemos numa casa (cada Estado seria uma), e chamássemos um encanador para conter uma inundação na casa de banho, ou tratar de um telhado quebradiço. Há também os que chamam um esteticísta ou massagista, o técnico varia conforme o conforto da casa (pois há bairros ricos e outros pobres). E como em toda cidade, há o proprietário da casa, há os inquilinos, há os despejos, os porteiros, as empregadas de limpeza, vizinhos malditos ou não. Ninguém pensa que trocar de casa seja possível, isso sim, seria coisa de extremista. É claro, segundo cada posição numa escala da esquerda para a direita, cada um considera o seu umbigo como um centro, tendo inimigos de cada lado. Porém, o extremo-centrismo é a atual posição dos intocáveis. E mais do que isso, é o lugar por onde se viabiliza qualquer atitude política. O campo do extremo-centrismo não é própriamente o da politica, é o da economia em primeiro lugar. As práticas devem permitir uma boa fluidez desta ultima, custe o que custar. Os verdadeiros políticos, aqueles que propõem mudar de casa, ou até queimá-la, são minoritários, relegados em segundo plano, discriminados e taxados de extremistas. Quem sabe, ainda bem, já que o projeto de um novo homem, fascista ou comunista (um com o modelo imaginado no passado e outro com o modelo projetado no futuro), mostrou-se com efeito um projeto assassino, vide o século passado. Resta que tenho a certeza de não ser o único a sentir um incómodo com as atuais perspectivas (ou falta delas) naquilo que em todo o lado se orgulha de ser o centrão. Este incomodo é o de um vazio, ou de uma falta de real. Não há chão para se pisar.

Outras pistas que me fazem pensar neste problema de "centro", são os exemplos de políticas de direita aplicadas por líeres de esquerda, e vice-versa. Nos EUA, por exemplo, Obama tem dificuldades imensas em fazer aprovar seu plano de reestruturação da saúde nacional, justamente por ser de esquerda (segundo aquele sistema bipartidario, que mais me parece o de um único partido com duas tendências alternantes). Bush teria mais facilidade para aplicar o mesmo plano, porque seria mais difícil para a oposição de taxá-lo de esqurdista, não correndo assim o mesmo risco que Obama tem de perder eleitores. No mesmo sentido, Obama tem uma margem de manobra maior para aplicar políticas de direita, correndo menos riscos de escandalizar as opiniões públicas nacional e internacional. Ora, a tal margem de manobra é um espaço que só é determinado por este mesmo espaço que é o extremo-centrismo: sejamos neutros, os partidarismos ferem as opiniões publícas, que ainda são importantes em democracia (ufa, ainda bem). Mas só o são porque se transmitem em votos, e deles é preciso para se manter no poder que, se não em todas, em muitas vezes parece-me ter um fim em si.

Estes casos são de um tipo de política - é histórico e cultural. Mas que impera. Encontro bastante atualidade na denuncia contra o totalitarismo que é o 1984 de Orwell. Afinal, se os amigos de ontem são os inimigos de hoje (Rumsfeld e Saddam) e guerra é paz, onde estamos? Grande parte das políicas de centro alinharam na Otan da mesma maneira que outrora diversas forças helenicas se alinharam na Liga de Delos contra os Persas. Antes era "contra os bárbaros", agora é "contra os fundamentalistas". Mas não é contra uma coisa nem outra, pois a economia ta aí: não foi por alma pacifista que França e Alemanha se oporam à guerra do Iraque. Os EUA denunnciaram a ligação Iraque-AlQaeda no dia a seguir em que Saddam desindexou o preço de seu petróleo do dólar, para cotá-lo em Euros. Tudo isso parece devaneio, e é, mas volto ao nervo do que chamo extremismo de centro - a economia. Aqui se negociam alianças, e se determina a tal mobilidade, grande ou pequena, das políticas de centro.

O que há portanto de particular em relação aos outros extremos, é que o de centro se caracteriza por ser uma máscara. Uma mascara útil, talvez necessária, mas que ás vezes cai.