11.19.2008

ESCREVENDO UM LIVRO



Me sinto pequeno nesta selva de pedras
Mas meu coração é grande, e me protege.
A saudade eu guardo sempre,
No meu sangue português.
Vou juntando os cacos espalhados das minhas identidades

Esta encruzilhada de universos já não me assusta mais.
Viver uma segunda vez é ter a plena consciencia de ser um verme
De que morrerei um dia
E que escreverei,
um livro.

Quero abraçar minhas pessoas,
andar pelo deserto e ter filhos.
Mas antes disto comecei,
pelo começo:
O livro se chama DESENCONTROS

Um abraço à todos e boa leitura...
(o livro não começa exatamente assim. Isto é um pequeno enxerto, uma degustação)




A fita parou de rodar.
Era preciso, mais uma vez, trocar de lado ou mesmo de fita, mas Ricardo, ao ouvir pela anésima vez a voz de Isabel, sentia-se afogado para sempre na amargura. E não sabia bem o que fazer. Ricardo Maestro nunca quis ser delegado. Mas agora, mais do que nunca, ele sentiu esta necessidade. Seu escritório escuro, com persianas fechadas, localizava-se no departamento de polícia científica, o quinto andar de um prédo sujo no centro da cidade de São Paulo. Ele não dormia mais em casa. Ou simplesmente, não dormia mais. Suas olheiras, também escuras, apontavam na direção de um cinzeiro abarrotado de bitucas que impestavam o tal andar com o cheiro das cinzas, consumidoras de seus pulmões. Aos sessenta e quatro anos de idade ele já não sonhava mais com a sua aposentadoria. As fotografias de uma família perdida se misturavam com pilhas de recortes de jornal, e uma coleção de fitas-cassetes que não eram dele. Estas fitas tornaram-se a sua única osbessão. Ele estava cansado, e suas costas doloridas lhe lembravam o peso sentido em ombros que suportavam o mundo. Ele se lembrava da militância estudantil, do quinto ato institucional implantado pelo regime militar brasileiro, em 1968, das clandestinidades, e do seu envolvimento na luta armada para derrubar o poder. Mas não lembrava agora porque é que ele tinha se tornado delegado de polícia. E era o que ele estava se perguntando. Porque? Mas isto era uma distração momentânea. Sua preocupação maior era outra. Sua última missão na terra, o motivo das suas respirações, era passional. Era o de encontrar o paradeiro de um assassino. O assassino da sua filha.

Richard O. sentia-se pleno naquela noite de verão em São Francisco. Pleno porém tonto. As anfetaminas misturadas num uísque roubado pelo seu amigo Ian estavam resultando em efeitos indesejáveis para o seu cérebro endiabrado. Era começo de lua cheia numa cidade de férias, e a festa de fim de ano colegial estava só por começar. Apesar da maconha e daquelas outras drogas já esquecidas, Richard O. estava convencido de que sua confusão estava sendo causada pelas luzes ofuscantes do estrobo, enquanto ele procurava no meio de uma multidão de vultos dançantes, a linda Marie Jackson. Marie estava na classe de Richard, e já faziam três anos que ele estava apaixonado por ela. Foram três noites durante os quais Richard contemplou, com as mãos no queixo e olhares distantes, a imaginação fertilizante de um dia levantar o vestido azul de Marie, de preferência sem as mãos. Suavemente. Devagar. O levantar da saia durou, quem sabe, estes três anos. Isto tudo resultou num beijo no começo desta noite. Mas Marie não voltava do banheiro e agora Richard estava aos empurrões à sua procura. Ele só tinha esta preocupação. Era a de acalmar seu coração que estava prestes a explodir, por conta de dois eternos venenos: a droga e a paixão. Na flor da idade, o jovem ambicionava, além do coração da moça, um ingresso numa boa faculdade, e estudar química. Mas no final daquela noite Richard conquistaria seu primeiro sonho: Marie tiraria, finalmente, o seu vestido azul.

Um falcão planava por entre as colinas de Yucatán. Ao longe, sentado numa rocha, o índio Gonzáles soltava baforadas de seu cachimbo curto, acompanhando com olhos finos e perspicazes as rondas horizontais daquela ave. Ele já tinha vomitado os últimos resquícios rituais de peyotes colhidos no deserto mexicano. Ele não tinha nenhuma preocupação. Calmo, enquanto entoava cantos baixos de louvor aos deuses mortos, ele acariciava um livro antigo de capa dura, que continha imagens indecifráveis, deixadas por seus antepassados, e retransmitidas por cada geração de sua descendência. Momentos antes disto, sua alma tinha-se envolvido em transes que o fizeram ver chamas que ardiam um templo rodeado por armaduras de bronze e machados cravados em cabeças de animais selvagens. Sua luta foi constante e solitária. Terminou com um grito. Seguiram-se relâmpagos e trovoadas que fizeram o céu chorar em cima das colinas agora vigiadas pela ave lançada por Gonzáles. Os clarões assustadores tinham-no lembrado um sinal recebido na infância, pois eles tinham as mesmas proporções daquele dia em que, quando pequeno, Gonzáles tinha encontrado um livro com imagens estranhas, enterrado nos fundos do quintal onde trabalhava seu avô. Ele não esperava nada. Sabia que, em breve, a ave voltaria da caça.

O caro leitor deve estar se perguntando o que estas três pessoas têm em comum. Elas não têm nada em comum. Eles também não sabiam que, um dia, iriam se encontrar.